Do milagre da multiplicação dos escudos, dos euros e das coisas até à crise actual
Publicada por João Barbosa à(s) 10:31
Decidi escrever este texto como apanhado das minhas ideias e
do meu relativamente curto conhecimento da actual crise e das suas causas, consequências e
soluções.
O dinheiro e as motivações
Recentemente li um artigo que comparava a actual crise com a
situação do país nos séculos 17 e 18, marcados pelo grande influxo de ouro
brasileiro e pelo suceder de uma crise profunda e bancarrota nacional.
Então o que me abriu os olhos, foi reparar na relação entre
o fluxo de dinheiro e o desenvolvimento primário (agricultura e industria) do
país. Um país quanto tem um grande influxo de dinheiro, seja ouro, seja
petróleo, seja crédito, o que faz com esse dinheiro? O dinheiro não serve para
plantar na terra nem para alimentar uma fábrica transformando-o em algo melhor,
serve apenas para uma coisa, comprar coisas! Logo um influxo de dinheiro tem a
consequência de tornar um país importador.
Ao contrário do que aprendi na disciplina de história, a
minha opinião é que o ouro do Brasil não foi mal gasto, mas sim gasto da única
forma possível, comprando coisas. Mas teve ou não relação com a bancarrota
nacional do século 18? Provavelmente sim, pois o país ficou dependente de uma
droga e enquanto andou sob a sua dependência não desenvolveu os sectores
primários, porque não era preciso. O ouro foi prejudicial ao desenvolvimento
primário do país por existir, não por ter sido mal gasto.
Então o que é que faz com que um país se desenvolva? Digamos
que a fome é a mãe de todas as motivações. Ainda revisitando a história de
Portugal, e mais uma vez discordando com os livros da escola, eu sou da opinião
que Portugal não se aventurou nos descobrimentos por ser um país de bravos, mas
sim por ser um país pobre. Explica muita coisa.
A história mais recente
Indo à história mais recente do século 20, e começando pelo
Estado Novo, a política económica seguida por Salazar era só gastar o que
temos. Não dever nada a ninguém, não pedir nada a ninguém. Se por um lado o
país não tinha dívida pública nem défice, por outro lado ficou parado no tempo,
nos 50 anos que se seguiram à grande depressão; não acompanhou o
desenvolvimento dos países que actualmente são os mais desenvolvidos como EUA,
Japão, Reino Unido, Alemanha e França.
Curiosamente os países referidos foram os principais
participantes da segunda guerra mundial (faltando apenas a URSS); o que me leva
a pensar numa outra motivação, a guerra. Não vou dizer que a guerra é uma coisa
boa, mas a verdade é que algumas consequências são positivas como o
desenvolvimento científico e tecnológico, a renovação do tecido económico, a
distinção entre o essencial e o acessório e até o desenvolvimento
civilizacional e da mentalidade dos povos.
O crédito e a dívida pública
Nestes últimos 30 anos, em Portugal, o estado contraiu uma
quantidade enorme de crédito com vista a acelerar o desenvolvimento do país e
melhorar a qualidade de vida dos cidadãos; a dívida pública cresceu
ininterruptamente ultrapassando nos últimos anos 100% do PIB, cerca de 200 mil
milhões de euros. Actualmente Portugal é dos países com mais km de auto-estrada
por km quadrado, mais e melhores pontes, um dos melhores serviços de saúde, das
melhores escolas (em infra-estrutura não em qualidade do ensino).
No caso dos privados, a situação é equivalente. O crescimento
do crédito privado foi enorme e o seu total anda também na casa das centenas de
milhares de milhões de euros. Este crédito surgiu fundamentalmente sob forma de
crédito habitação com responsabilidades partilhadas pelos particulares que
compraram casas de valores que nunca poderiam liquidar, dos bancos que fizeram
má avaliação dos riscos e campanhas agressivissimas com juros reduzidos, e do
próprio estado que deu incentivos fiscais às famílias e aos bancos para que
houvesse mais crédito.
O crédito fácil originou imensa construção e imensa venda de
casas por valores que, apesar de nunca poderem ser pagos, seriam cada vez mais
altos. Esta é a bolha do imobiliário, não é só nossa e aconteceu um pouco por
todo o mundo desenvolvido começando nos EUA e difundindo-se através de ligações
financeiras, de derivados de crédito e de simples imitação de políticas pró
casa própria.
Em Portugal, esta bolha alimentou uma parte importante da
economia, a construção. Mas como uma bolha é uma bolha, os ganhos são tão
fáceis que mesmo esse sector não se tornou suficientemente eficiente para que o
custo real da construção decrescesse, e isso sim permitisse uma melhoria
sustentável das possibilidades de ter casa própria e casa nova a valores
suportáveis.
Então em que foram gastos aproximadamente 200 mil milhões de
crédito público e 200 mil milhões de crédito privado? Infra-estruturas,
imobiliário e importações.
O nível de vida médio subiu? Sim. Agora muito mais gente tem
casa nova, carro novo, circula em auto-estradas topo de gama, tem shoppings a partir
(imobiliário comercial), e muita coisa que não havia há 30 ou mais anos.
O país desenvolveu-se? Em determinados aspectos sim, mas não
nos sectores primários, agricultura e industria.
Então ter dinheiro não é bom? O dinheiro é um activo
transaccional, ganhamos dinheiro com aquilo que produzimos e vendemos, e
gastamos comprando coisas que nos são mais úteis do que as que temos para
vender. Quando a nossa forma de “ganhar” dinheiro é pedi-lo emprestado,
descuramos a primeira parte e funciona tudo bem até nos deixarem de emprestar.
E o consumo?
O consumo interno é geralmente um bom indicador de
prosperidade económica, mas não no caso português. Nos anos entre 2000 e 2009 o
consumo interno foi bastante alto em Portugal, perto do top em termos de
consumo/pib per capita, no entanto o crescimento nesses anos foi o 2º pior da
ocde, praticamente nulo. Há duas razões para esse fenómeno, a primeira é a
origem do dinheiro aplicado que foi crédito e não criação de valor; e a segunda
tem a ver com o destino do consumo, neste caso foi fundamentalmente em imobiliário
e bens importados, não em inovação, não em empreendedorismo, não nos sectores
primários.
A dívida pública actual e os falsos vilões
Muito mais difícil do que expor as ideias anteriores é
descobrir ou sequer sugerir soluções que tenham alguma hipótese de resolver o
problema.
Vou começar por descartar hipóteses e especificamente alguns
vilões que têm sido culpados com base em falácias ou simples falta de
conhecimento económico.
Os bancos:
Os bancos foram as instituições privadas mais prejudicadas
com a actual crise, para quem acredite que os mercados raramente se enganam
(como eu) basta ver o histórico de cotações em bolsa.
Para quem não se fie nisso, há que pensar que os bancos têm
actualmente em carteira balurdios de crédito que, mesmo não pensando no mal parado,
dá prejuízos sistemáticos. Os créditos habitação concedidos nos anos antes da
crise rendem spreads ridículos abaixo de 1% indexados à euribor que está em
mínimos históricos; ou seja o juro real que rendem ao banco fica em muitos
casos abaixo de 2-3%.
A dívida pública está em grande parte nas mãos dos bancos
nacionais e foi em grande parte contraída a juros baixos, muito mais baixos do
que os juros actualmente praticados no mercado secundário; ou seja, para alienarem
essas posições seria com grandes prejuízos, e muitos tiveram que o fazer para
conseguir sobreviver e cumprir as exigências de capital. Neste caso há ainda a
agravante moral da pressão exercida pelos governos à compra de dívida pública,
com destaque para as frequentes reuniões entre Teixeira dos Santos e os CEO’s
dos maiores bancos nacionais de onde saíram compras de dívida, nos meses antes
do pedido de resgate.
Os juros da troika:
Apesar de poder ser mal visto que os parceiros da UE cobrem
juros de 4-5%, bastante acima dos com que o país se financiou nas décadas
anteriores, e se calhar acima do que é sustentável, na minha opinião esse é um
pormenor estético e não tem nada a ver com a causa nem com a solução dos
problemas.
Por um lado é certo que se nos cobrassem 0% de juros por uma
quantidade ilimitada de dinheiro, sem exigências que limitem o crescimento da
dívida continuava tudo bem, vivíamos à custa dos outros mas vivíamos bem. Por
outro lado, os actuais credores estão a emprestar sabendo que é muito difícil
para Portugal sequer travar o crescimento da dívida quanto mais repagá-la. De
modo que, quer os créditos vencidos, quer os respectivos juros, serão pagos por
novos empréstimos concedidos pelos mesmos credores; ou seja terão que ser os
credores a liquidar os seus próprios créditos deixando-os na prática com poucas
hipóteses de algum dia virem a ser reembolsados ou capitalizar o que quer que
seja.
A troika e as políticas actuais
O ajustamento do estado.
O programa de ajustamento exigido pela troika é muito
importante para abrir caminho para um futuro sustentável, e isto porque o
imenso crédito que o estado contraiu tornou-o demasiado pesado, com demasiados
custos e pouco eficiente. É preciso distinguir o essencial do acessório,
reduzir os custos e tornar os serviços mais eficientes.
Os impostos.
Este é o ponto onde eu discordo com as actuais políticas,
penso que o excesso de carga fiscal sobre uma economia pouco produtiva e
ineficiente estão a atirar para a bancarrota uma série de PME’s e particulares
reduzindo a base para um futuro crescimento da economia.
Em teoria, os impostos deveriam ser sobre o “excedente”, ou
seja sobre os lucros das empresas e sobre a diferença entre os ganhos e os
gastos dos particulares. Na prática muitos impostos são cegos, como por exemplo
o IVA, e podem facilmente inviabilizar empresas viáveis ou fazer crescer o
custo de vida dos particulares para valores acima do rendimento disponível.
A receita fiscal tem um limite e há vários indicadores que
indiciam que esse limite já foi ultrapassado até ao ponto em que um aumento de
impostos origina uma diminuição de receita e por outro lado uma redução de
impostos não origina necessariamente essa perda no presente e muito menos no
futuro.
O desemprego e o emprego.
O desemprego é um reflexo do ajustamento da economia. Em
tempos em que o estado não tem margem para contratar por caridade e em que
muitas empresas não sobrevivem, especificamente aquelas em que os postos de
trabalho não são eficientes; o desemprego aumenta.
Em Portugal o desemprego é especialmente dramático devido ao
excesso de crédito das famílias. Durante os anos anteriores à crise as pessoas
endividaram-se em vez de poupar e agora em vez de mantimentos para o “Inverno”,
têm uma prestação para pagar.
Este ajustamento é também especialmente doloroso porque a
mentalidade das populações vai muito no sentido de ter emprego fixo para toda a
vida, sem formação, sem adaptação e sem preocupação com a própria eficiência.
Não existe uma cultura de produtividade enraizada, as pessoas preocupam-se mais
em saber se o salário cai ao fim do mês do que em saber se nesse mês criaram,
para o seu empregador, valor igual ou superior ao seu salário. Tudo isto faz
com que uma boa parte dos desempregados não estejam preparados para ser
reintegrados na economia.
No entanto, para mim o mais preocupante é o desemprego
jovem, nomeadamente jovens qualificados, com vontade de trabalhar e muita probabilidade
de serem eficientes. Há vários possíveis motivos para isso, um dos quais são as
ainda rígidas leis laborais, que não facilitam o despedimento e a renovação da
massa laboral; não permitem a substituição de um funcionário ineficiente com
salário mais alto por um eficiente com salário menor, ou até substituição de um
por dois ou mais sem aumento significativo dos custos e efectivamente reduzindo
o desemprego.
Não é certo se a flexibilização das leis laborais reduz ou
aumenta o desemprego, mas uma coisa certa é que melhoram a eficiência do
emprego existente e abrem caminho para um futuro crescimento.
As PPP:
Várias destas parcerias são reconhecidamente ruinosas para o
estado, em que por exemplo, em algumas delas o estado garante ao parceiro
privado um rendimento da ordem dos 15% anuais sobre o investimento.
No entanto, há que relembrar os apologistas de que se
rasguem os contratos, que em estados de direito não se rasgam contratos e que
se o estado o fizesse, esses parceiros facilmente ganhariam as acções em
tribunal (independência de poderes) e receberiam o seu quinhão de qualquer
forma. Este problema foi criado por quem assinou os contratos em nome do estado
e não em quem beneficia deles. Para ser resolvido tem que ser com negociação
cuidadosa e não com expropriação.
E então paga-se ou não a dívida pública?
A liquidação total ou de uma grande parte da dívida está
fora do conjunto das possibilidades. A dívida só desapareceria com uma
reestruturação unilateral em que se rasgavam contratos obrigacionistas com a
intenção de não assumir a dívida e ao mesmo tempo manter todas as regalias que
se obtiveram com o crédito, no fundo burlar os credores. Pois isso, uma
reestruturação sem acordo dos credores isolaria o país do mundo a nível de
crédito e mesmo a nível de transacções comerciais, teríamos que cair até ao
nível de vida em que o país pode ser auto-suficiente e esse é inimaginavelmente
baixo.
Mesmo as reestruturações de dívida por mutuo acordo, que obviamente
só surgem quando os credores sabem que é isso ou a bancarrota total, segundo a
história recente não dão bons resultados, nem resolvem problemas. Por exemplo,
a Argentina que entrou em bancarrota há cerca de 10 anos, ainda não resolveu os
processos com os credores da altura e poderá demorar gerações até voltar a ser
um país confiável. Já no recente caso da Grécia, um perdão significativo da
dívida nada adiantou, fazendo crer que os problemas vão para além do tamanho da
dívida ou dos respectivos juros, mas melhor descritos como uma dependência
crónica de um país que gasta mais do que produz e que independentemente do
tamanho total da dívida, o défice está para ficar.
Portanto, não se paga nem deixa de pagar. Num momento em que
o país já mostrou falta de capacidade para controlar o crescimento da dívida e
por isso perdeu a confiança internacional, surgiram os credores de recurso que
compreensívelmente exigem “apenas” que se controle o crescimento da dívida (o
défice), muito antes de pensar sequer em reduzi-la.
Os juros e os parceiros europeus
Os juros, apesar de não serem a causa dos problemas, nem uma
parte importante da solução, fazem parte da equação.
Assim que o país consiga atingir o excedente primário, ou
seja ter mais receita do que despesa excluindo juros; a confiança de que o país
consegue controlar o crescimento da dívida deverá permitir o regresso a taxas de
juro mais de acordo com as maiores economias da Europa; para isso poderá não
bastar um único exercício para os credores se certificarem que esse resultado
não se deve a receitas extraordinárias ou a um esforço fiscal insustentável.
Se, tendo sido dados esses passos, não for possível obter
crédito junto de instituições privadas a custos que originem um défice sustentável, os parceiros
europeus, incluindo os estados, o BCE, ou as instituições criadas para o
efeito, deverão voluntariar-se ou ser chamados a normalizar as taxas de juro
dos estados membros cumpridores.
O futuro do Euro
Está já provado que os pressupostos sobre os quais assentou
a criação do Euro não foram suficientes para assegurar a sua sustentabilidade
no longo prazo.
A continuação do Euro vai depender da criação de novas
regras, novas instituições e maior regulação central na zona Euro; ou seja um
passo no caminho da federalização da Europa. Isto para, definir melhor direitos
e deveres dos estados membros, garantir estabilidade no acesso ao crédito
público, normalização da regulação e credibilidade dos bancos oriundos dos
diferentes estados.
Na minha opinião, há apenas um país que pode ou não sair da
zona Euro, que é a Grécia, isto porque, um caso pode ser uma excepção, mas dois
casos é um problema sistémico. Portanto o mais provável é que se tiverem que
sair dois países, acabe o Euro. A Grécia está obviamente no lugar da frente da
porta da saída, depois de já ter passado por uma reestruturação da dívida que
se revelou inconsequente.
Com o nível de dependência da moeda única que se criou seria
terrível para qualquer país que saísse, provocando uma corrida aos bancos, uma
fuga de capitais, desvalorização da moeda própria, provavelmente um caos social
e também provavelmente a instituição de um regime de ditadura para fazer face à
necessidade de repor a ordem e a segurança e de resolver essa crise.
Penso até que uma desintegração total seria preferível à
saída de um único país.
1 comentários:
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*Excelente* análise do contexto de Crise(tm) em que vivemos, João. E descrita de uma forma bastante acessível.
Gostei particularmente dos parágrafos sobre o desemprego, lá mais para o fim. Como dizes, é bem mais fácil indicar as razões que levaram a tudo isto do que apontar soluções, mas aí nessa parte tocaste precisamente no que é, para mim, um dos pontos fundamentais. E o que poderia ser uma solução, acaba por dificilmente o ser.
Abraço!
-- paulo